FERNANDO HENRIQUE CARDOSO - O Estado de S.Paulo 06/04/2014
Quando me empenhei em fazer algumas reformas e modernizar a estrutura
produtiva do Brasil, tanto das empresas privadas quanto das estatais, não o fiz
movido por caprichos ou por subordinação ideológica. Tratava-se pura e
simplesmente de adequar a produção brasileira e o desempenho do governo aos
novos tempos (sem discutir se bons ou maus, melhores ou piores do que
experiências de tempos passados). Eram, como ainda são, tempos de globalização,
impulsionados por novas tecnologias de comunicação e informação, como a
internet, e por avanços nos sistemas de transporte, como os contêineres, que
permitiram maximizar os fatores produtivos à escala mundial. Daí por diante a
produção se espalhou pelo mundo, independentemente do local de origem do
capital. Os mecanismos financeiros, por sua vez, englobaram todos os mercados,
interligados por computadores.
Nas novas condições mundiais, ou o Brasil se integrava competitiva e,
quanto possível, autonomamente aos fluxos produtivos do mercado ou pereceria no
isolamento e em desvantagem competitiva, pelo atraso tecnológico e pela
ineficiência da máquina pública. As privatizações foram apenas parte do
processo modernizador. Tão importante quanto foi a transformação do setor
produtivo estatal. O objetivo era transformar as empresas estatais em
companhias públicas, submetidas a regras de governança, fora do controle dos
interesses político-partidários, capazes de competir e de se beneficiar das
dinâmicas do mercado.
A zoeira das oposições, Lula e PT à frente, foi enorme. Acusavam o
governo de seguir políticas "neoliberais" e de ser submisso ao
"consenso de Washington". A cada leilão para exploração de um campo
de petróleo (especialmente daquele onde se veio a descobrir óleo no pré-sal)
choviam protestos e mobilizações de "organizações populares", bem
como ações na Justiça para paralisar as decisões. Com igual ou maior vigor, as
oposições e os setores da sociedade que ainda não se haviam dado conta das
transformações por que passava a economia global protestavam contra as
concessões de serviço público, como no caso da telefonia, e iam ao desespero
quando se tratava de privatizar uma companhia como a Vale do Rio Doce ou as
siderúrgicas (que, aliás, foram privatizadas nos governos Sarney e Itamar).
Alegava-se que as empresas eram vendidas na bacia das almas, por preços
irrisórios. Na verdade, no caso da telefonia, venderam-se 20% de suas ações, as
que garantiam seu controle, por R$ 22 bilhões, preço que superou em mais de 60%
o valor mínimo estabelecido. Além disso, a privatização permitiu um grande
volume de investimentos nos anos seguintes, sem falar do salto tecnológico e do
aumento de produção que as privatizações renderam ao País. Passamos, por
exemplo, de 2 milhões de celulares nos anos 1990 a 260 milhões hoje em dia.
Dizia-se que as privatizações reduziriam os empregos, quando houve uma
expansão extraordinária deles. Que a Vale estava sendo trocada por nada, quando
foi difícil encontrar contendores no leilão porque seu valor, na época, parecia
elevado, e se hoje vale bilhões foi porque houve investimento e ação
empresarial competente (diga-se de passagem, em impostos hoje a Vale paga muito
mais ao governo, por ano, do que pagava em dividendo quando era uma estatal). A
Embraer, de quase falida, passou a ser uma das maiores empresas do mundo.
Isso tudo foi paralisado a partir do governo Lula, no afã de manter a
pecha sobre o governo anterior de "vendedor do patrimônio nacional" e
de neoliberal. Nada de concessões, privatizações nem modernização que cheirasse
a globalização. Enquanto os ventos do mundo favoreceram a valorização das
commodities agrominerais, graças à China, e houve abundância de dólares, a
máquina econômica rodou a todo o vapor e deu a ilusão de que bastaria expandir
o crédito, baixar os juros e incentivar o consumo para o PIB crescer e o
bem-estar se generalizar. A crise financeira global de 2007/9 ensejou ao
governo Lula a oportunidade, bem aproveitada, de fazer políticas anticíclicas,
com resultados positivos. Terminados os efeitos mais dramáticos da crise, os
governos de Lula e Dilma fizeram uma leitura equivocada: estava dada a licença
para enterrar o passado recente dos anos 1990 e aderir sem rebuços ao populismo
econômico: mais Estado, mais impostos, menos juros, mais salários, mais consumo
e às favas com as concessões e modernizações, às favas com o papel regulador do
Estado - pelas agências - em relação ao mercado.
Deu no que deu. O governo Dilma, premido pelas dificuldades de fazer a
máquina pública andar e pela sociedade, que exige melhor qualidade dos
serviços, redescobriu as concessões (ah, mas não são privatizações, dizem, como
se outra coisa tivesse sido feito com as telefônicas...). E as faz mal feitas:
pouco dinheiro privado e muito crédito público. Dá-se conta agora de que a
retomada das empresas estatais pelos partidos, como se vê na Petrobrás e na
Caixa, bem como o uso abusivo do BNDES, deu mau resultado. E ainda houve uma
perda bilionária de recursos, criaram-se novos "esqueletos" (dívidas
não reconhecidas publicamente) e contabilidades criativas impostas para
esconder transferências de recursos não declaradas no Orçamento.
Como deve estar arrependida a presidente Dilma, no caso da Petrobrás, de
não se haver desembaraçado do ônus político legado por seu antecessor, que
permitiu ao interesse privado e político penetrar a fundo nas empresas
estatais...
Apesar de tudo, PT e governo já se estão preparando para enganar o povo
na próxima campanha eleitoral fazendo-se de defensores do interesse popular,
como se este se confundisse com estatização e hegemonia partidária, e
estigmatizando os adversários como representantes das elites e fiadores dos
interesses internacionais.
Cabe às oposições desmistificar tanto engodo, tomando à unha o pião dos
escândalos da Petrobrás, rechaçando a pecha ideológica de
"neoliberal" e reafirmando a urgência de mudar os critérios de
governança das estatais.
FERNANDO H. CARDOSO, SOCIÓLOGO,
FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
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