sábado, 13 de outubro de 2012

OS MARGINAIS DO PODER - MARCO ANTONIO VILLA

MARCO ANTONIO VILLA - HISTORIADOR. É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS - O Estado de S.Paulo
Vivemos um tempo curioso, estranho. A refundação da República está ocorrendo e poucos se estão dando conta deste momento histórico. Momento histórico, sim. O Supremo Tribunal Federal (STF), simplesmente observando e cumprindo os dispositivos legais, está recolocando a República de pé. Mariana - símbolo da República Francesa e de tantas outras, e que orna nossos edifícios públicos, assim como nossas moedas - havia sido esquecida, desprezada. No célebre quadro de Eugène Delacroix, é ela que guia o povo rumo à conquista da liberdade. No Brasil, Mariana acabou se perdendo nos meandros da corrupção. Viu, desiludida, que estava até perdendo espaço na simbologia republicana, sendo substituída pela mala - a mala recheada de dinheiro furtado do erário.

Na condenação dos mensaleiros e da liderança petista, os votos dos ministros do STF têm a importância dos escritos dos propagandistas da República. Fica a impressão de que Silva Jardim, Saldanha Marinho, Júlio Ribeiro, Euclides da Cunha, Quintino Bocayuva, entre tantos outros, estão de volta. Como se o Manifesto Republicano de dezembro de 1870 estivesse sendo reescrito, ampliado e devidamente atualizado. Mas tudo de forma tranquila, sem exaltação ou grandes reuniões.
O ministro Celso de Mello, decano do STF, foi muito feliz quando considerou os mensaleiros marginais do poder. São marginais do poder, sim. Como disse o mesmo ministro, "estamos tratando de macrodelinquência governamental, da utilização abusiva, criminosa, do aparato governamental ou do aparato partidário por seus próprios dirigentes". E foi completado pelo presidente Carlos Ayres Brito, que definiu a ação do PT como "um projeto de poder quadrienalmente quadruplicado. Projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe, portanto". Foram palavras duras, mas precisas. Apontaram com crueza o significado destrutivo da estratégia de um partido que desejava tomar para si o aparelho de Estado de forma golpista, não pelas armas, mas usando o Tesouro como instrumento de convencimento, trocando as balas assassinas pelo dinheiro sujo.
A condenação por corrupção ativa da liderança petista - e por nove vezes - representaria, em qualquer país democrático, uma espécie de dobre de finados. Não há no Ocidente, na História recente, nenhum partido que tenha sido atingido tão duramente como foi o PT. O núcleo do partido foi considerado golpista, líder de "uma grande organização criminosa que se posiciona à sombra do poder", nas palavras do decano. E foi severamente condenado pelos ministros.
Mas, como se nada tivesse acontecido, como se o PT tivesse sido absolvido de todas as imputações, a presidente Dilma Rousseff, na quarta-feira, deslocou-se de Brasília a São Paulo, no horário do expediente, para, durante quatro horas, se reunir com Luiz Inácio Lula da Silva, simples cidadão e sem nenhum cargo partidário, tratando das eleições municipais. O leitor não leu mal. É isso mesmo: durante o horário de trabalho, com toda a estrutura da Presidência da República, ela veio a São Paulo ouvir piedosamente o oráculo de São Bernardo do Campo. É inacreditável, além de uma cruel ironia, diante das condenações pelo STF do núcleo duro do partido da presidente. Foi uma gigantesca demonstração de desprezo pela decisão da Suprema Corte. E ainda dizem que Dilma é mais "institucional" que Lula...
Com o tempo vão ficando mais nítidas as razões do ex-presidente para pressionar o STF a fim de que não corresse o julgamento. Afinal, ele sabia de todas as tratativas, conhecia detalhadamente o processo de mais de 50 mil páginas sem ter lido uma sequer. Conhecia porque foi o principal beneficiário de todas aquelas ações. E isso é rotineiramente esquecido. Afinal, o projeto continuísta de poder era para quem permanecer à frente do governo? A "sofisticada organização criminosa", nas palavras de Roberto Gurgel, o procurador-geral da República, foi criada para beneficiar qual presidente? Na reunião realizada em Brasília, em 2002, que levou à "compra" do Partido Liberal por R$ 10 milhões, Lula não estava presente? Estava. E quando disse - especialmente quando saiu da Presidência - que não existiu o mensalão, que tudo era uma farsa? E agora, com as decisões e condenações do STF, quem está mentindo? Lula considera o STF farsante? Quem é o farsante, ele ou os ministros da Suprema Corte?
Como bem apontou o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo, o desprezo pelos valores republicanos chegou a tal ponto que ocorreram reuniões clandestinas no Palácio do Planalto. Isso mesmo, reuniões clandestinas. Desde que foi proclamada a República, passando pelas sedes do Executivo nacional no Rio de Janeiro (o Palácio do Itamaraty até 1897 e, depois, o Palácio do Catete até 1960), nunca na História deste país, como gosta de dizer o ex-presidente Lula, foram realizadas na sede do governo reuniões desse jaez, por aqueles que entendiam (e entendem) a política motivados "por práticas criminosas perpetradas à sombra do poder", nas felizes, oportunas e tristemente corretas palavras de Celso de Mello.
A presidente da República deveria dar alguma declaração sobre as condenações. Não dá para fingir que nada aconteceu. Afinal, são líderes do seu partido. José Dirceu, o "chefe da quadrilha", segundo Roberto Gurgel, quando transferiu a chefia da Casa Civil para ela, em 2005, chamou-a de "companheira de armas". Mas o silêncio ensurdecedor de Dilma é até compreensível. Faz parte da "ética" petista.
Triste é a omissão da oposição. Teme usar o mensalão na campanha eleitoral. Não consegue associar corrupção ao agravamento das condições de miséria da população mais pobre, como fez o ministro Luiz Fux num de seus votos. É oposição?

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O SENTIMENTO NACIONAL DE JUSTIÇA E O MENSALÃO - ALOÍSIO DE TOLEDO CESAR


O SENTIMENTO NACIONAL DE JUSTIÇA E O MENSALÃO
Aloísio de Toledo César
A firmeza dos ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão vem ajudando a sepultar em parte a ideia de que o favor da nomeação para tão alto cargo poderia prevalecer na tomada das decisões. Como já foi tantas vezes divulgado, os integrantes dessa Corte foram majoritariamente nomeados pelo ex-presidente Lula, com a participação claríssima de políticos petistas.
Todos os povos possuem um sentimento nacional de justiça e em alguns deles isso se deixa transparecer de forma bastante aguda. Há casos emblemáticos em torno dos quais os povos externam com absoluta certeza o que esperam da Justiça e o que devem fazer os julgadores. Se a lei e o Direito indicam ser possível essa conduta, é compreensível que os magistrados julguem nesse sentido.
No episódio do mensalão ficou evidente que o sentimento nacional de justiça, envergonhado por condutas tão sórdidas, somente seria satisfeito com a reparação vertical provinda do Judiciário. Isso começou a ocorrer de forma surpreendente, de início com os votos seguros e claros do ministro relator Joaquim Barbosa, que foi seguido por vários outros, sempre na linha de que os crimes cometidos são de extrema gravidade e merecem reparação.
Houve duas exceções, infelizmente, envolvendo as decisões dos ministros Ricardo Lewandowski e Dias Tófoli, ambos vistos como pessoas com ligações mais fortes com o Partido dos Trabalhadores (PT) e seus dirigentes, dos quais partiu a ação delitiva. Toffoli foi até mesmo advogado do PT, o que demonstrava claro impedimento para o julgamento.
Em verdade, ao proferir o voto com o qual absolveu José Dirceu da imputação do crime de corrupção ativa, o ministro Dias Toffoli assumiu claramente a posição de seu advogado. Praticamente se esquecendo de que é ministro da Suprema Corte e estava julgando um réu, ele começou a defender de forma enfática a pessoa de José Dirceu. Não chegou a dizer que ele deveria ser canonizado, mas foi tão contundente nessa defesa que passou a olhar para os outros ministros, para ver se algum deles o apoiava - e ninguém sequer virou os olhos em sua direção. Seria preferível que Toffoli e Lewandowski tivessem externado o seu impedimento para julgar, o que rotineiramente ocorre quando o magistrado, por sua amizade ou ligação com uma das partes, não se sente absolutamente livre para o gesto soberano de prestar a jurisdição.
Declarar-se impedido não é feio nem incomum, não diminui o juiz e se dá com frequência na vida dos tribunais. Se eles se tivessem dado por impedidos, sem nenhuma dúvida teria sido muito melhor para ambos, porque não transpareceria na sua conduta a impressão de que estavam divididos entre a lealdade que devem à Nação e àqueles que os nomearam.
Em verdade, a sua lealdade deveria ser exclusivamente à Nação. A clareza do sentimento nacional de justiça, nesse caso tão emblemático, exigia dos julgadores um comportamento compatível e com a grandeza que a grande maioria esperava: a condenação exemplar dos culpados.
Por mais que os dois ministros divergentes possam jurar, até ao pé da cruz, que a absolvição de José Dirceu e outros decorreu unicamente de suas convicções jurídicas, será muito difícil encontrar alguém que acredite nisso. A ideia que prevaleceu é a oposta - e isso é lamentável, por envolver o mais importante tribunal do País, agora, aliás, fortalecido aos olhos de todos pelo exemplo do julgamento.
E mais: o fato de absolverem Dirceu e outros, ao fundamento da inexistência de provas, soa como uma censura aos demais ministros, os quais as consideraram suficientes. Inferiorizados nessa posição, dado o maciço predomínio do entendimento em contrário, levarão para as respectivas biografias um dado sombrio, que teria sido evitado caso optassem por se julgar impedidos.
No caso particular de Lewandowski, cada vez que, durante as votações, ele externava os seus argumentos pela absolvição, acabava agindo como se estivesse a se explicar aos brasileiros por que procedia daquela maneira. Seus gestos, sua expressão, ao julgar, exprimiam constrangimento, e não a firmeza dos demais julgadores que optavam pelas condenações.
Em verdade, quando julga, o magistrado não deve externar emoção alguma. Conforme deixaram claro o presidente da Corte, Carlos Ayres Brito, e o ministro Cezar Peluso - este em seu último voto como magistrado -, não há ódio na decisão que condena, e isso é o que realmente ocorre no cotidiano de quem julga. Uma expressão absolutamente neutra é a mais compatível para quem condena ou absolve.
A lealdade aos companheiros constitui traço de caráter merecedor de admiração nas relações humanas, mas não quando envolve a figura do juiz, porque este, sendo praticamente um escravo da lei e do Direito, não pode ficar dividido entre o que a Nação e os amigos dele esperam.
Enfim, externar lealdade aos companheiros no momento em que presta a jurisdição serve para demonstrar que o juiz não deveria estar ali a exercê-la, ou seja, fica aparente até mesmo o erro no ato de quem o escolheu. Ressalte-se, a propósito, que outros ministros nomeados pelo ex-presidente Lula exerceram a tarefa de julgar com absoluta independência e se mostraram sensíveis ao sentimento nacional de justiça nesse processo tão emblemático.
Será mesmo muito difícil para os brasileiros admitir que os dois ministros optaram pela absolvição por motivos tão somente jurídicos, sobretudo porque as suas posições estão em choque com o entendimento da maioria. Por mais que Lewandowski e Toffoli possam argumentar que manifestaram exclusivamente um entendimento jurídico divergente, sempre ficará a ideia de que estavam pagando o favor da nomeação. Isso é péssimo para o Supremo Tribunal Federal e, especialmente, para eles.
* Desembargador aposentado do tribunal de Justiça de São Paulo
e.mail: aloisio.parana@gmail.com
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