Carta-depoimento de um saaraui residente em El Aaiún, no Saara Ocidental ocupado pelo Marrocos, recebida no dia 19 de novembro de 2010.
Espero que possa redigir bem o que aconteceu e que você possa entender minha forma de expressar as coisas. Você sabe que há quase um mês se montou o acampamento de protesto pacífico nos arredores de El Aaiún, com tendas beduínas e tendas de campanha, etc. Montou-se fora da cidade para evitar que se produzisse alguma briga entre os marroquinos e os saaráuis e assim não dar motivo a intervenções policiais. Quase todos os saarauis nativos de El Aaiún estavam no acampamento. A situação era de paz total, não reivindacávamos nem independência, nem referendo, nem nada disso. Só pedíamos trabalho para os licenciados, ajuda para os deficientes e idosos. No fundo, tínhamos plena confiança de que esta atitude ia ser bem recebida pelo governo marroquino. Estivemos 22 días negociando a solução desse problema com as autoridades locais marroquinas.
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No entanto, na segunda, dia 8 (refere-se ao dia 08.11.2010) apareceram milhares de soldados e policiais, com apoio de 3 helicópteros. Apareceram às tres da madrugada, dizendo que iam evacuar o acampamento e que davam uma hora para que as pessoas fossem embora. Como você pode comprender, não é possível evacuar 30.000 pessoas -com idosos, crianças, mulheres incluídos- em só uma hora. Assim, começou a intervenção do exército contra o acampamento.
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Devido a que agiam com total brutalidade e contra toda a população, tentamos nos defender para ver se salvávamos as mulheres e as crianças, mas a agressão era tão forte e tão brutal que a única coisa que podíamos fazer era sair correndo, como podíamos e os que podiam. Ficou muita gente, cercada pelo fogo e pela água quente que o exército jogava. Tem muita mais gente morta do que se diz. O que acontece é que isso será conhecido com o passar do tempo. Quando amanheceu, começaram a disparar indiscriminadamente e as pessoas se espalharam pelo deserto como puderam.
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Dada essa cruel intervenção contra civis indefesos, o resto da população se revoltou violentamente, queimando contêineres, jogando pedras, etc, porque todo mundo tinha parte de sua familia nesse acampamento (refere-se ao acampamento "Gdeim Izik": Dignidade). Durante todo o dia, a revolta continuou e, já pela tarde, os colonos marroquinos começaram a atacar e saquear as casas dos saarauis, entre elas a da minha família. Como havia muita tensão e medo em El Aaiún, tomamos a fatal decisão de sair fora da cidade, a uns 14 kms.
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Lá estávamos todos juntos, sentindo-nos protegidos pela distância, quando, por volta da meia-noite, começaram a aparecer policiais e militares. Fomos todos algemados, incluídos mulheres, crianças e meus pais. Puseram-nos de bruços e nos espancaram com uma espécie de bastão de beisebol, mas um pouco menor e de alumínio. Começaram a nos interrogar sobre coisas que não sabíamos, como por exemplo: quem tinha organizado o acampamento, onde se escondiam os que tinham negociado com o governo, etc. etc.
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Tiraram-nos a roupa e nos espancaram. Com meu pai, fizeram barbaridades que prefiro não contar. Diziam-nos que, se não falássemos, continuariam torturando-o. Depois amarraram as mãos da minha mãe e começaram a espancá-la diante de todos nós com o bastão, como se fosse um animal, até que as costas dela começaram a sangrar. Eu fiquei inconsciente durante uns segundos devido ao choque de ver a minha mãe torturada. Os gritos dela eram horrorosos.
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Quando me recuperei, estavam amarrando o meu sobrinho de pouco mais de 3 anos, pelos pés, em um jeep militar. Então começaram a arrastá-lo devagar pelo chão, dizendo-nos que, se não falássemos, acelerariam o veículo e o matariam. Finalmente fizeram isso, aceleraram e o arrastaram quase um quilômetro. Começamos a gritar e a chorar, mas, quanto mais gritávamos, era pior.
Ficamos assim da meia-noite até às sete e quinze da manhã. Finalmente me vendaram os olhos. Fizeram o mesmo com meus dois irmãos e com um dos meus cunhados. Puseram-nos em um veículo policial, fatigados, meio desmaiados e com pancadas por todo o corpo. E aí, nos levaram à cidade.
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Na delegacia havia centenas de saarauis com os olhos vendados e muitos policiais. Coube a mim um quartel da gerdarmaria (polícia marroquina). Durante a tortura, me fraturaram ossos das pernas e algumas costelas. Meus olhos e minha boca estão arrebentados e os dedos da mão direita estão quebrados. O resto da família também está mal, se bem que com ferimentos que podem ser considerados leves se comparados com outros. O pior são os ferimentos do meu sobrinho, que está com o corpo em carne viva, como se tivesse uma queimadura.
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Quando nos soltaram do quartel, fomos para casa. Um dos meus irmãos foi ao hospital, mas até agora não voltou. E já faz dois dias. Pelo visto, voltam a prender as pessoas não marroquinas que se aproximam ao hospital. Nós, saarauis, não podemos ter acesso à assistência sanitária.
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Já faz dois dias que o pior são os ataques de civis marroquinos, respaldados e protegidos pelo exército e pela polícia. Arrombam as casas, violam as mulheres, saqueiam e destroem tudo. Ontem às 21:25 hs, pegaram um saaraui de 21 anos e o degolaram em público, no meio da rua, sem que ninguém pudesse fazer nada. Foi degolado por civis marroquinos.
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Pedimos ao mundo que detenha tudo isto, por favor, que acabe com esta barbárie e que os marroquinos tenham um pouco de moralidade e parem de agredir e de matar saarauis inocentes. A atitude da polícia e dos colonos piorou hoje, especialmente depois de ouvirem que a ONU não vai intervir. Agora sim que estamos em perigo. As ruas estão tomadas por colonos e policiais. Sair para comprar comida ou qualquer outra coisa significa um risco, além dos insultos, pedradas, ameaças, etc. Não tenho outra palavra para descrever esta situação: HORROR.
Um abraço a todos e obrigado pela atenção.
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(esta é uma versão da carta-depoimento, traduzida do espanhol)
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OBS: por motivos óbvios o nome do depoente será mantido em sigilo.