14/03/2014 - Democracia e ditadura
Por Denis Lerrer
Rosenfield - O Globo em 10 Mar 2014
O discurso da diplomacia brasileira sobre a Venezuela e os países bolivarianos segue a doutrina do PT, segundo a qual estaríamos diante de uma democracia, pelo simples fato de lá haver eleições. Eleições seriam, então, o único critério de definição de estados democráticos, com evidente desprezo para com as instituições da sociedade civil. Mais concretamente, há total desconsideração para com o equilíbrio de poderes e a independência dos poderes Judiciário e Legislativo. A liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral é sistematicamente pisoteada, senão aniquilada. Neste sentido, a "democracia" poderia prescindir das liberdades civis e políticas, devendo se contentar com eleições e referendos, cada vez mais restritos, pois as condições de competitividade são progressivamente reduzidas. De fato, a democracia representativa, nesses países "socialistas", é substituída, para retomar um conceito de J. L. Talmon, pela democracia totalitária.
A democracia
representativa caracteriza-se por ser constitucional, obedecendo a princípios
que fogem a qualquer deliberação popular. Consequentemente, não pode ser
objeto de deliberação a igualdade de gêneros ou de raças. Uma maioria popular
machista ou racista não poderia se impor em uma democracia representativa,
graças aos limites constitucionais, de princípios e valores, por ela
assegurados.
Segundo a
democracia totalitária, o poder reside na vontade popular encarnada pelo líder
carismático. Não possui ele, em virtude de sua delegação popular, nenhuma
limitação, como se eleições lhe autorizassem, virtualmente, a fazer qualquer
coisa. Basta um referendo para que tal ocorra. Foi o que aconteceu com o
"socialismo do século XXI", nas figuras de Chávez e de sua
caricatura Maduro, que aboliram a separação de poderes, emascularam o
Judiciário e o Legislativo, fazendo do Executivo o único poder que conta.
A economia de
mercado, por sua vez, foi cerceada quando não aniquilada, tendo como
consequência o domínio do Estado, cujos efeitos mais nítidos são a inflação
galopante e a falta de produtos básicos, sendo o papel higiênico o mais
emblemático deles.
A liberdade de
imprensa e dos meios de comunicação em geral foi sendo suprimida, sobrando,
hoje, o resquício de uma sociedade livre. Milícias no melhor estilo das SS
nazistas aterrorizam a população, fazendo uso da violência e do assassinato
sempre e quando o líder máximo o exigir. Tudo, evidentemente, em nome da
"revolução" e do "socialismo".
Não obstante, o
Itamaraty e setores do PT continuam justificando a "democracia
venezuelana", como se os protestos do que resta de oposição fossem o
real perigo. As posições estão totalmente invertidas. A dita "cláusula
democrática", bem entendida, significaria, apenas, a "cláusula
democrática totalitária".
Do ponto de vista
diplomático, por uma questão de pudor, não se pode acatar o argumento de que
o país não se imiscui nos assuntos de outros países, uma vez que foi bem isto
que o Brasil fez no Paraguai. O então presidente Lugo foi afastado do poder
por um impeachment, segundo a legislação daquele país. O governo brasileiro
não reconheceu o impeachment e aproveitou a ocasião para suspender esse país
do Mercosul, viabilizando, desta maneira, a entrada da Venezuela. É evidente
o uso de dois pesos e duas medidas.
Nesta
perspectiva, poderíamos aplicar os mesmos critérios para o que se denominou
chamar de "ditadura" militar brasileira, com o intuito de melhor
apreciarmos a "verdade" do período, contrastada com o juízo
"democrático" do governo a propósito do "socialismo do século
XXI".
Considera-se a
ditadura militar como se estendendo desde o governo Castello Branco até o fim
do governo Figueiredo, quando há diferenças significativas neste longo
período. O governo Castello Branco, por exemplo, tinha uma inclinação
liberal, enquanto o governo Geisel foi fortemente estatizante.
Segundo esse
critério, o governo Dilma se encaixaria na concepção geiselista, com forte
intervenção do Estado na economia, a escolha de empresas e setores
privilegiados a serem apoiados e o uso da política fiscal e de subsídios para
o apoio a esses grupos. Seria Geisel de esquerda conforme essa concepção?
Mais ou menos democrático? E Lula, em seu primeiro mandato, seria
castellista?
Durante o período
do governo Castello Branco (1964 a 1967) até o Ato Institucional nº5,
promulgado por Costa e Silva, em dezembro de 1968, o país gozava de ampla
liberdade. Foi esse ato extinto em 1978, por Geisel, e o habeas corpus,
restaurado. Penso não ser atrevido dizer que as liberdades civis eram muito
mais respeitadas do que o são nos países que, atualmente, encarnam o
"socialismo do século XXI".
A gozação, para
não dizer a sátira e a ironia do "Pasquim", começou em 1969, quando
o regime militar tinha endurecido e a ditadura propriamente dita se
estabeleceu. Isto é, a ditadura tolerou o "Pasquim", enquanto os
governos bolivarianos não toleram qualquer crítica, muito menos aquela que se
faz através da sátira que atinge os seus líderes.
A greve do ABC,
sob liderança de Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo do Campo e Diadema, foi um marco no Brasil, abrindo efetivamente
caminho para a liberdade de participação sindical. Ocorreu em 1974, sob o
governo Geisel. A partir dela novas greves se estenderam de 1978 e 1980, já
no governo Figueiredo. Imaginem algo semelhante nos países bolivarianos! Por
muito menos, os "socialistas" enviam as suas milícias e fazem uso
de perseguições, assassinato, prisões e tortura.
A Lei da Anistia,
negociada entre militares democratas, políticos do establishment e a oposição
do MDB, com amplo apoio da sociedade civil, foi assinada por Figueiredo, em
agosto de 1979, abrindo realmente caminho para a redemocratização do país.
São os próprios militares que tomaram a iniciativa de abandonar o poder.
Sem dúvida a
"democracia" bolivariana consegue ser mais dura do que a ditadura
brasileira nesses períodos!
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sábado, 15 de março de 2014
DEMOCRACIA E DITADURA - DENIS LERRER ROSENFELD
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