quinta-feira, 28 de outubro de 2010

MAL COMPARANDO... - DOCA RAMOS MELLO

Mal Comparando...

No céu, há um burburinho inquietante, falam os apóstolos, cochicham os querubins, discutem os santos, Deus está macambúzio, há muita coisa entre o reino azul das auréolas celestiais e a vã filosofia de araque de V. Exa. Metalurgíssima, de sorte que o Filho do Homem começa a ficar impaciente. Fortes rumores indicam que, em solos de Macunaíma, uma vez mais ocorreu insolência de porte, capaz de constranger sumariamente o Salvador. Ato contínuo, Jesus Cristo chama Pedro às falas:

_ Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida, mas parece que um fariseu tupiniquim quer me tomar o posto, ai de mim, que ralei na cruz para salvar os ímpios, padeci espinhos sobre minha carne santa, sofri agruras e maus-tratos, enfrentei descrença, inveja e ódio, e agora Me acontece uma coisa dessa, Me surge um sujeito assim do nada, um reles pecador que, dizem, rouba e mente com destempero, e tem o topete de se comparar a Mim, oh, meu Santo Sudário, ninguém merece... Pedro, que fazes tu que não botas cobro nesta circunstância aberrante? Onde está a pedra que te confiei para que sobre ela edificaste Minha igreja e em suas naves internas pusesses ordem? Cáspite, Pedro, dormes no remanso?!

_ Não, Mestre, estou sempre alerta, porém O Cara é uma unha encravada, com todo respeito. Esperto, matreiro, prega aos pobres como se sua tribo fosse, mente, envolve, tripudia, falseia, de sua boca saem impropérios e bobagens, aleivosias horripilantes e prosódia flácida. Mas francamente, se me permite o abuso da intuição, o problema está com vosso Pai Eterno. Ele bem podia ter tomado uma providência antes que o caso chegasse a tal extremo, livre arbítrio demais é perigoso e...

_ Cala-te! Somos pela liberdade de expressão, de escolha, de tudo.

_ Bom, o Senhor é, mas O Cabra anda querendo amordaçar a imprensa, implantar um reino pessoal e eterno na terra dele e, disparate imenso, deixar aquela cobra terrorista treinada em seu lugar.

_ Cobra?! Avia-te, Pedro, tenho trauma de cobra, tu sabes o que uma delas fez no meu Éden com sua fala sibilante, segregando torpezas aos ouvidos de Adão e Eva, aqueles incautos nus, para depois desgraçar a vida de todo o meu rebanho, tu és sabedor, oh, sina minha, destarte deverei novamente ser crucificado mil vezes por hora para depurar os pecados desses infiéis! Oh, não Me fales em cobra, não Me recordes o estopim de toda a tragédia que fez desenrolar minha saga para salvar a humanidade, oh, Eu me lembro de Pilatos, da perseguição aos meus apóstolos, da traição de Judas, da minha solidão no Horto, do pão e vinho que tive de fazer render, de Lázaro, a quem devolvi o sopro da vida e...

_ Cobra, Senhor, insisto, cobra peçonhenta. A cabecinha em pé, a linguinha arisca, os olhos apertados mirando o próximo lance, a próxima vítima, o rastejar calculado sob o cajado daquele que encena aceitar como seu mestre acima das verdades divinas, do céu que brilha no horizonte, das águas, das flores, das seivas da vida, de Seus ensinamentos, oh Jesus... Enfim, de tudo que reluz ou não na terra de Euclides da Cunha, quiçá no planeta azul, por desmedida plenipotência, abusadíssimo que é o pusilâmine. Aquela, Cristo Redentor, é uma cobra chupando duas mangas com fiapos. Pior ainda, Senhor, com arrimo de Chico Buarque, o da banda, ex-marido de Dona Nenê! Se me permite, Mestre, a coisa tá preta.

_ Daí ao chefe dela se comparar a Mim, Pedro, não tem cabimento. Disse o herege que temos as mesmas barbas, meu Pai Eterno! Barba por barba, por que então não se comparou a Caifás, por exemplo?

_ Por espertezas de Ibope, Senhor.

_ Ibope...?

_ Sim, Ibope. É uma tábua que os terrenos tupinambás inventaram para medir popularidade, fazer pesquisas diversas, incluindo as eleitorais. Ladinos, aproveitam-se da invenção e mentem bastante com ela. O Senhor, Jesus Nazareno Rei dos Judeus, dá um Ibope dos diabos, com escusa do verbo de baixo calão, todavia verdade seja dita, o Senhor é uma espécie de coringa na boca dos pecadores. E em Seu Santo Nome, fazem-se coisas aterrorizantes!

_ O que Eu tenho a ver com esse Ibope, Pedro?

_ Hiii, Mestre, o Senhor é muito popular.

_ Mas, é um acinte...

_ Também assim considero, Mestre, entretanto ninguém aplica freios àquele vivente, a tudo e a todos, ele desobedece, ele não tem medidas. Escorado numa simplicidade de fancaria, tingido-se com as tintas do pobre homem bom, pai dos desvalidos e inimigo dos ricos, ele atravessa rios e mares em cima de palcos, é um ator, Jesus Cristo, um ator mambembe de lábia afiada! Fiquei sabendo que até mesmo a Bíblia civil de seu povo, chamada de Constituição, ele afronta sem se perturbar, é um homem desidioso, loucamente apaixonado por si mesmo, um ególatra, Mestre.

_ Pelas portas de Damasco! Corre que também se comparou a Tiradentes...

_ E a alma de Tiradentes está em estado de choque desde que soube dessa arrelia. Prostrada, persiste em pedir para que a enforquem de novo e de novo e de novo, quedou-se catatônica, afinal não possui o Vosso Santo equilíbrio. Encontra-se vagando como doida desde então, desbussolada.

_ Minha Santa Mãe, ai, minha Santa Mãezinha, os céus a protejam dessa ousadia suprema! Mamãe sofreu deveras para Me defender das maldades da vida, viu-Me pregado à cruz, comeu o pão que a Bíblia amassou, não suportaria Me perceber enxovalhado uma vez mais e...

_ Lamento, Mestre, já aportou aos santos ouvidos de Vossa Mater Dolorosa a imprecação.

_ Oh, que meu Pai Eterno a resguarde!

_ Ela se retirou para orações, porém cuidou de deixar mensagem para o Senhor, Mestre:





Filho Meu, abençoado seja! Recolhi-me a orar fervorosamente debaixo de meu manto, enquanto aguardo a passagem desta era negra de acintes, ousadias, falácias e falcatruas, eis que não posso mais suportá-las, arde-me a alma, mesmo na minha humildade resignada de sofrida Sagrada Mãe – paciência tem termo. A minha esperança é que os soldados guardiões do templo da opinião popular esmaguem a cabeça da surucucu e mostrem o pau para seu mentor, Deo Gracias, oremus. Caso contrário, ora pro nobis, pois prevejo horizontes carregados da velha praga zédirceu, que adivinho atocaiada à espreita, tal qual urubus cercam carniça, os céus tenham misericórdia dessa gente bronzeada que não lê papiros, amém, amém, amém... E tu, Filho Amado, olho vivo: um entardecer desses o Cara se dependura na tua cruz (usando falsos cravos, claro).

DOCA publicou esta crônica em:
http;//www.papolivre.com.br



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